Os (in)diferentes raiar da Aurora



A noite estava amena e o rio espelhava a alegria e o glamour dos passageiros de um cruzeiro que se encontrava atracado no terminal  de Lisboa e por outro a esperança de dois jovens timorenses que pernoitavam ao relento no relvado adjacente ao terminal de cruzeiros. 

Aurora estava chocada com o relato dos dois jovens, sobre como tinham sido explorados e enganados com a promessa de trabalho em Portugal. 

Na verdade até trabalharam, mas não lhes pagaram e ainda exigiram dinheiro para a renda de casa e para tratar do NIF e agora estavam entregues à sua sorte, sem casa, sem trabalho e sem dinheiro. 

Aurora e os seus Companheiros de ronda ficaram sem chão. Estavam perante dois jovens que não sendo Sem-abrigo, estavam efetivamente sem abrigo, sem qualquer estrutura de apoio e num país estrangeiro, que embora irmão não os estava a acolher com dignidade. 

O José, bisneto de português, ainda domina minimamente a língua portuguesa, mas o amigo apenas verbaliza algumas palavras em português. E foi assim que relatou a Aurora e aos seus Companheiros de ronda como tinham chegado a Portugal, agradecendo repetidamente o aconchego alimentar e pedindo que lhe arranjassem trabalho. 

A frase "Senhora, arranje trabalho para nós por favor", ecoava na mente e ressoava no coração de Aurora e dos seus Companheiros de ronda. 

Apesar de ser um assunto veiculado pela comunicação social dias antes, este relato na primeira pessoa deixara Aurora e os seus Companheiros sem chão. 

Foi necessário esfriar a emoção e trazer para o terreno a razão. 

Não podiam ficar indiferentes à situação que estavam a vivenciar, mesmo sabendo da existência de muitos outros Josés. 

Sabiam que não conseguiriam mudar o mundo, mas poderiam torná-lo um pouco melhor. 

Ficaram com o contacto do José para partilhar com a Instituição onde fazem voluntariado, para que esta de forma institucional pudesse intervir e articular com as Entidades competentes. 

No dia seguinte, foram enviados emails a sinalizar a situação e a pedir apoio para a sua resolução, mas as respostas vieram em modo automático, agradecendo e informando que encaminharam o caso para as Equipas de rua. Os novos tempos levam-nos a este automatismo desumanizado.

Sem respostas concretas, apesar das múltiplas "portas" a que bateram, Aurora confronta-se com a real hipocrisia e cobardia do poder político, independentemente da sua ideologia, mas também com a fragilidade  na atuação das Instituições portuguesas, aquelas que têm o dever e o poder de atuar e resolver situações como esta.

Entretanto Aurora recebe um SMS do José com a mesma frase que entoava na sua mente: "Senhora, por favor, arranje trabalho para nós". 

Não pediam dinheiro, comida, teto. Não, pediam somente trabalho. 

Os dias amanheciam chuvosos e cinzentos, mas Aurora e os seus Companheiros de ronda não pararam de procurar uma solução, acreditam em milagres, acreditam em amanheceres luminosos, acreditam na solidariedade genuína e no amor ao próximo. 

No final da semana, Aurora ligou ao José e soube que tinham sido realojados pela Câmara Municipal de Lisboa numa pousada em Alcobaça. Já não estão ao relento, pensou para si, mas do outro lado ouviu, além dos agradecimentos - como se Aurora tivesse feito alguma coisa, apenas enviou emails, no conforto do seu lar porque ela e os seus Companheiros de ronda decidiram não ficar indiferentes - e de novo: "Senhora, por favor, arranja trabalho para nós".

Aurora partilhou estes acontecimentos com os seus Companheiros de ronda, que não ficando indiferentes se desdobraram em contactos junto de amigos. 

E eis que como o raiar da aurora, que marca o início do novo dia, o alvorecer, o princípio da vida, a luz que vence a escuridão da noite, surge a boa notícia de que um amigo de uma das companheiras de ronda,  daria emprego ao José e ao amigo, arranjaria casa e iria buscá-los à pousada, bem como ajudaria a tratar da sua legalização. 

Parecia uma cena de filme, mas desta vez era real. Era a vida a acontecer. Era o raiar da aurora. 

Há Seres Humanos com um coração gigante e um amor ao próximo sem limites. 

Hoje o José e o amigo adormecem e acordam no aconchego de um lar. Hoje o José e o amigo têm trabalho e rendimento para sobreviverem com dignidade, aquela a que todos têm direito. Hoje, o José e o amigo têm a cana para pescar. 

Hoje o José e o amigo têm um novo Amanhecer, porque a cooperação, a esperança, o amor ao próximo, a solidariedade genuína venceram a indiferença, a hipocrisia e a cobardia.

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